- Ó pai, o Afonso disse-me que já posso ir outra vez a casa dele, para brincarmos. Posso?
- Podes, filho.
- Ó pai, porque é que eu não podia lá ir, nem ele vir cá?
- Foi um mal-entendido, filho. Já não interessa.
O “mal-entendido” tinha ocorrido uns meses antes, à porta do colégio. Libório tinha ido esperar o filho e cruzara-se com o Sr. Gonçalves, em igual missão. Corria o mês de Novembro de 1979 e estava-se em véspera de eleições.
- Sr. Libório, por amor de Deus, você traz um autocolante dos comunistas ao peito!…
- E depois, Sr. Gonçalves, estamos num país livre e democrático…
- Lindo!!!… Conversa típica de comuna. Nunca pensei… E tem você o miúdo num colégio particular. Ponha-o mas é na escola do Estado. Lá é que é o lugar para a prole de tipos como você.
- Ó Sr. Gonçalves, a falar dessa forma vê-se que o sr. é um grandecíssimo reaccionário.
- Reaccionário, eu?!… Pois que seja. O que isto precisava era de outro Salazar, para palermas como você andarem na linha.
- Palerma, eu?!… Seu… seu… fascista. Fascista é o que você é!
- Comuna!… Vá mas é para a Rússia. E pensar que o seu filho ia lá casa e o meu à sua. Acabou! Vão para a Rússia!… Não quero misturas.
O Sr. Aires, que todos os dias ia buscar o neto, ainda tentou apaziguar as coisas. Em vão.
A azáfama era grande na secção de pesca de um popular clube da Linha de Sintra. Organizar um concurso para cerca de 400 pescadores, no litoral sintrense, era obra. Ainda por cima era um concurso que comportava uma prova federativa no seu seio, como na altura era hábito. Por isso, ninguém prestou muita atenção quando o presidente da secção anunciou a inscrição de um novo membro.
O concurso correu bem.
- Então, como é que ficou a nossa equipa? – Perguntou um dos pescadores do clube organizador a um outro.
- Ficou bem, pá, fazemos o primeiro ou o segundo lugar. O Gonçalves fez sexto, o Miguel décimo terceiro e o Ferreira décimo sétimo. Mas o melhor foi o pescador novo. Fez segundo.
- Não conheço esse tipo. Não esteve no sorteio da Azóia.
- Não. Parece que esteve no da Foz do Falcão. Eu também não o conheço. E creio que mais ninguém o conhece, à excepção do velho.
A entrega dos prémios tinha acabado de encerrar quando o seccionista, o velho Sr. Aires, disse para o Gonçalves:
- Traz aí a taça do segundo lugar, que o pescador novo só chegou agora. Olha, vai entregar-lha.
Gonçalves avançou em direcção ao pescador novo, que, de costas, depois das apresentações, era felicitado pelos companheiros de secção.
- Ora aqui tem a sua taça. Logo à primeira você foi o melhor do clube, hem! Isso é que foi. Mas… mas… é você?!…
- Você, por aqui?!…
- Bom, tome lá. Pa… pa… parabéns, Libório.
- Obrigado… companheiro Gonçalves.
Após se terem cumprimentado, desajeitadamente, ficaram a olhar um para o outro. Então, um deles abriu os braços. O outro fez o mesmo. E trocaram um longo abraço, temperado por fortes palmadas nas costas.
Num canto da sala, o Sr. Aires sorria. E a sua cara era a expressão da perfeita beatitude.
Nota: Esta historieta é baseada em factos reais, os quais não conteceram necessariamente como o que está ficcionado.