Era uma terra onde não se passava nada. Situada num concelho onde nada de especial se passava. E numa região onde se passava muito pouca coisa. Era uma terra do fundo do Portugal profundo.
Até que um dia um acontecimento veio agitar a pacatez da aldeia. Asdrúbal Silva, o filho da Ti Augusta, viúva do Ti Adelino moleiro, sagrara-se campeão da primeira divisão do campeonato regional de águas interiores da associação de pesca desportiva da região.
A coisa deu brado.
- Então, vizinha, e agora que o seu marido é campeão, o que é que acontece?
- Agora, vai disputar o campeonato nacional. Vai andar pelo país todo, à pesca. Vai a Coimbra, a Penacova, a Chaves… - Explicou Isaurinda, impante de orgulho, à vizinha Custódia.
O feito não deixou o presidente da Junta indiferente.
- Temos de fazer qualquer coisa. - Disse Eufrásio para Euclides, o presidente do clube recreativo local.
- Devíamos organizar uma festa.
- Uma coisa assim como uma espécie de uma gala…
- Exactamente.
A festa foi preparada com o máximo desvelo. Assim como assim, a última coisa festiva que acontecera na terra fora o reatamento das missas dominicais na capela, havia dez anos. Em má hora, contudo. O jovem padre havia-se perdido de amores por uma paroquiana, a Joaquina da Várzea, e dera às de Vila Diogo levando a moça consigo para França.
- Euclides!, Euclides!, o presidente da Câmara está confirmado. - Gritou Eufrásio, da estrada.
Do fundo da leira, onde sachava umas batatas, o presidente do clube viu o seu conterrâneo agitar, esfusiantemente, um papel branco. Soube depois que o papel era o fax da confirmação.
No dia da festa da consagração de Asdrúbal Silva, a colectividade estava um brinco e engalanada a preceito. Encimando o palco, uma faixa azul com letras douradas marcava a cerimónia: “Viva o nosso campeão Asdrúbal”. O povo inteiro estava presente e a mesa era farta.
Primeiro, falou o presidente da colectividade. Salientou que “o feito do nosso Asdrúbal, honra o clube, a terra, o concelho e a região”. E enalteceu o carácter “de antes quebrar que torcer” do homenageado, classificando-o também de “desportista exemplar”.
Depois, falou o presidente da Junta.
- Isto é o fruto… sublinho, é o fruto... da nossa política desportiva. A qual nos levou a subsidiar a colectividade com mil euros. Qualquer coisa como duzentos contos, para V. Exas. perceberem melhor o alcance da nossa política.
Por fim, falou o presidente da Câmara. Disse que o apoio ao desporto era uma opção “estruturante” da sua vereação, apoio esse que se integrava numa “acção multidisciplinar” destinada “a combater a desertificação”. E que o concelho “podia não ser dos mais desenvolvidos, mas tinha filhos, caso do Sr. Asdrúbal, que elevavam bem alto a alma e a gesta dos naturais do município”.
Na quarta-feira seguinte, o jornal da sede do concelho deu conta da festividade, na primeira página, com um título a quatro colunas: “ Presidente da Câmara aposta no incremento desportivo da região”. E exibia uma foto do presidente da edilidade, no uso da palavra. A notícia, na página 3, era ilustrada com mais fotos do presidente da Câmara e uma do presidente da Junta. Aludia a uma política desportiva mais agressiva e comparticipada pelo município. No fim do texto, umas quantas linhas referiam-se à terra e ao homenageado.
- Oh Asdrúbal, mas que raio, tu não apareces no jornal em foto nenhuma! - Disse-lhe o compadre Teófilo, com os olhos postos na reportagem. Falam de ti só no fim e ainda por cima trocam-te o nome. Chamam-te Asdrúbal Costa, em vez de Silva…
Com um espírito filosófico só ao alcance dos grandes pescadores e dos homens de elite, Asdrúbal respondeu:
- Ora, compadre, isso é normal... Bem vê, os jornais têm de dar relevo às grandes personalidades. E não podem esmiuçar tudo. Se assim fosse, o repórter tinha que escarrapachar lá aquela frase do presidente da Junta, quando quis pôr a plateia em silêncio, antes de falar: “Ou se calam todos ou atiro-vos a porcaria da placa a entregar ao Asdrúbal e racho os cornos a algum…”