- Eh pá, a gente vai contigo à pesca, amanhã.
“A gente” eram os rapazes sem nome.
Eram o Tolas, o Manivelas, o Periquito, o Max, o Snack-bar e o Soviético.
Eram rapazes que frequentavam o clube, no início dos nãos 70 do século passado, e a quem ninguém tratava pelos verdadeiros nomes (muitos de nós nem os sabiam...), apenas pelas alcunhas. Rapazes criados à larga, uns sem pai, outros sem mãe, outros sem uma coisa nem outra.
O clube era sua verdadeira casa e os “encarregados de educação” eram os sócios mais velhos, sempre com um conselho amigo, uma reprimenda apropriada, um incentivo simpático.
Malandros até ao tutano, amigos de pregar partidas, sempre num certo limiar da marginalidade, que, porém, nunca ultrapassavam. Ou, vamos lá, ultrapassavam apenas ligeiramente, numa ou outra ocasião.
Como diria o jornalista e escritor Mário Zambujal eram “bons malandros”.
No sábado seguinte, poucos dias antes do Natal, ala que se faz tarde. Comboio para S. Pedro do Estoril. A viagem foi uma cegada. Os meus companheiros desestabilizaram a carruagem com os seus dichotes e piadas. E com partidas a algumas das passageiras. Mas nada de inaceitável. E quase todos os presentes se riram a bom rir das tropelias dos seis.
Nas rochas, à direita da praia, logo ao primeiro lançamento, tiro um belo sargo, à volta dos 600 gramas. Os rapazes sem nome trataram do resto. Enfiaram-no num saco de plástico e puseram-no à sombra, debaixo de uma rocha côncava.
Passado um bocado, pesco um outro sargo, de cerca de metade do tamanho do outro. A malandragem arrumou-o, no mesmo saco. Depois, mais nada. Passada uma hora, os meus companheiros davam sinal de impaciência, pelo que terminei a minha actuação.
- Olha!, rataram-te o sargo. – Disse o Snack-bar, que, apesar de ser abstémio, tinha uma cara e uns olhos que faziam lembrar um piancho.
- Rataram-me o sargo?...
- Sim, pá. Mais propriamente os ratos romperam o saco e levaram-te o sargo.
- Qual?
- O maior.
A viagem de regresso foi outra cegada, com o Max a fazer questão de mostrar o sargo restante a todas as raparigas e senhoras que viajavam na carruagem. No autocarro, mais tourada...
E foi assim, alegres e despreocupados, que chegámos ao clube.
Foi então que...
Foi então que o Sr. Eduardo, o solteirão que era o “pai” e a “mãe” da colectividade, nos deu a triste notícia.
- O Almirante não foi aceite na Marinha.
- F...-se!
- Cum c...... !
- Ganda m.... !
- Eh pá, não pode ser!...
Ao fim de meia-hora, o silêncio de chumbo mantinha-se. Sentados a uma mesa, pensávamos no Almirante, o rapaz que sabia tudo sobre corvetas, lanchas, draga-minas, cruzadores e porta-aviões das várias marinhas do Mundo. O rapaz que andava sempre com volumosos livros de vasos de guerra e outro material náutico debaixo do braço. E que nos corrigia amiúde: - Barcos, não! A Marinha não tem barcos. Tem Navios!
O puto que esperara ansiosamente fazer 16 anos para se alistar como voluntário, fora, cruelmente, rejeitado.
O silêncio foi interrompido pelo Soviético, que devia a alcunha aos avantajados olhos claros, ao cabelo louro, sempre em pé, e à cara esquisita. – E se falássemos com a Céu?
- Para quê?
- Ora, para dar uma alegria ao rapaz, para ver se ele recupera. O puto deve estar de rastos.
Olhámos uns para os outros, como quem diz: “não é mal pensado, não senhor”.
A Céu, era uma rapariga bastante jovem e bonita, separada do marido, muitos anos mais velho. Estava por conta de um engenheiro da Lisnave, com família e muitos afazeres, pelo que tinha muito tempo livre. Tempo esse que utilizava para namorar, digamos assim, com os jovens do clube. À vez, todos já tínhamos passado pelos doces braços da Céu, em pensões da Av. Almirante Reis, em Lisboa, em estadas generosamente pagas por ela.
A ideia do Soviético era, portanto, darmos uma palavrinha à moça, para iniciar o Almirante na vida sexual. A ideia foi aprovada, por unanimidade.
- Falas tu com ela. – Intimou-me o Periquito.
- Eu, porquê?....
- Ora, porque ela tem muita consideração por ti.
A Céu, verdadeiramente comovida com a triste história do Almirante, fez jus ao seu grande coração. – Claro que sim! Coitadinho do moço. – Disse, enxugando uma lágrima.
Nos dias seguintes, todos nós, mais a Céu, esperámos ansiosamente pelo Almirante.
Só que....
Só que ele não veio. E nunca mais ninguém viu o Almirante. Assim como aparecera, saído do nada, havia cerca de um ano e meio, assim desapareceu, vergado pela funesta recusa. Nunca mais ninguém soube nada dele.
Na véspera de Natal, todos nós nos preparámos para fazer caretas à D. Cesaltina, quando chegou ao clube. Era uma velha beata que devotava um ódio figadal à nossa querida Céu. “Uma devassa sem vergonha”, nas suas palavras.
Mas, surpresa das surpresas, a D. Cesaltina, ao passar pela Céu, em vez de emproar o nariz e passar a direito, estendeu-lhe a mão, sorriu, e desejou-lhe um feliz Natal.
Ficámos de cara à banda. Passado uns minutos, o Tolas fechou a boca, levantou-se e foi atrás dela, inquirindo-a sobre tal mudança de atitude.
– Ora, então, é Natal. É tempo de boa vontade”. – Respondeu a velha.
Entre nós, esmiuçámos o significado do gesto da velha rata de sacristia.
Às tantas fez-se luz.
– Natal o c..... - disse o Tolas, que era um tanto abrutalhado. - A velha soube foi da boa vontade da Céu para tirar os três ao Almirante. E ficou tocada pela atitude da miúda, pois a beata gramava à brava o puto.
E este, meus amigos, é o maior milagre de Natal, relacionado comigo, de que tenho lembrança.
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PS: Um bom Natal para todos.