Estava eu muito descansado da vida a pescar fataças, entre Valada e Porto de Muge, no meu querido Rio Tejo, quando se aproximou de mim um habitante local, bastante idoso, de samarra e boina.
- Boa tarde, amigo. – Disse, acrescentando: – Não se admire nem se assuste com o que possa ver aqui. Você está precisamente no ponto onde eles costumam passar. Adeus. E não tenha medo quando os vir. No fundo, você é um homem de sorte.
Fiquei a olhar o velho a afastar-se, sem perceber o que me quis dizer.
Continuei a pescaria, com a pulga atrás da orelha.
Quem passaria?...
Foi então que reparei que a água do Tejo tinha adquirido uma cor avermelhada, com reflexos dourados, por onde quer que espraiasse a vista.
Fiquei alerta. Era estranho. Muito estranho. Mas eu tinha sido advertido para a ocorrência de fenómenos inusitados. Expectante, pensava no que viria a seguir.
Quem passaria?...
Foi então que surgiu um barco avieiro. Do lado da Palhota, de jusante para montante. Sem motor. Impulsionado a remos e pela maré, que subia. Transportava três pessoas. Dois homens e uma mulher. Um, no meio, parecia tomar notas do que lhe diziam. Concentrei-me nele. Boina na cabeça, cigarro na boca. Tronco direito. Não parecia um avieiro.
Apesar de estarem a passar perto, fui à mochila buscar os binóculos que sempre me acompanham na pesca, para ver melhor.
Fixei-me no homem de boina. Parecia... Sim, sim, era ele, a recolher notas para o seu livro “Avieiros”. Num impulso incontrolável, gritei: - Sr. Redol, Sr. Redol, Sr. Alves Redol...
Nada. Não me ouviam. Caí em mim. Como me poderiam ouvir se, com certeza, estávamos em dimensões temporais diferentes.
Mal refeito desta passagem, eis que ouço uma vozearia de crianças, atrás de mim, no talude de contenção das águas em tempo de cheias. Cinco ou seis garotos saltitavam e falavam uns com os outros. Prestei atenção e ouvi, entre outros, os nomes Gaitinhas, Gineto e Sagui. Estes nomes eram-me familiares. Logo a seguir, fez-se luz. Eram os miúdos do livro “Esteiros”, pois, atrás, pedalando devagar numa velha bicicleta vinha um homem ainda relativamente jovem, alto, com um bigode fino e bem aparado. - Sr. Soeiro, Sr. Soeiro, Sr. Soeiro Pereira Gomes... - Gritei.
Em vão.
Todo eu tremia, de excitação e de comovida alegria por aquelas visões, ao vê-los afastarem-se. Foi então que comecei a ouvir uma melodia e uma voz, cantando: - Tejo que levas as águas / correndo de par em par / lava a cidade de mágoas / leva as mágoas para o mar.
Saindo de trás de um salgueiro, envolto numa capa preta, vinha o cantor, um homem alto, de barba farta, sem bigode. – Sr. Adriano, Sr. Adriano, Sr. Adriano Correia de Oliveira... – Gritei.
Uma vez mais, sem resposta.
Ainda atordoado pelos acontecimentos, logo fui sacudido por um vozeirão. Pelo talude, atrás de mim, um homem alto e forte, de cabelo relativamente comprido, ia passando e recitava tonitruante: - Lá vai no Mar da Palha o cacilheiro / comboio de Lisboa sobre a água / Cacilhas e Seixal, Montijo mais Barreiro / Pouco Tejo, pouco Tejo e muita mágoa. Gritei: - Sr. Ary, Sr. Ary, Sr. Ary dos Santos...
Nada.
Virei-me para a água e sentei-me. Exausto.
Foi então que, saindo do nada, um homem alto e magro surgiu, caminhando sobre a água, à minha frente, cantando: - Todos moram numa rua / a que chamam sempre sua / mas eu cá não os invejo / o meu bairro é sobre as águas / que cantam as suas mágoas / e a minha rua o Tejo. - Sr. Viana, Sr. Viana, Sr. José Viana... Gritei, acenando.
Nada.
Esperei. Quem viria mais?
Mas não vinha ninguém. E eu à espera.
Foi então que lobriguei, a certa distância, uma fragata. Viam-se vários vultos. Pus os binóculos e já não me surpreendi. Eram eles. Claro!... Lá estavam o Redol, o Soeiro, o Dias Lourenço, o Álvaro e mais alguns intelectuais, em mais uma reunião conspirativa, no recato do Tejo. Jovens, ainda, saindo directamente da década de 40 do século passado para diante dos meus olhos. E sorridentes, tal qual surgem numa célebre foto da época.
Pus-me a dizer adeus, ingenuamente.
E foi então que...
E foi então que, de lá, contra todas as expectativas, todos me acenaram. E continuaram acenando até a fragata se diluir num horizonte marcado pela vermelhidão das águas do Tejo, mais os seus magníficos reflexos dourados.
Quando acordei acenava ainda, freneticamente.
Tinha tirado uma das minhas sestas, após as sandes do almoço.
Olhei o Tejo. As águas tinham a sua cor natural. Nada de vermelhidão. Apenas reflexos dourados, aqui e ali, como é normal.
Então lembrei-me duma frase publicitária. E parafraseei-a, baixinho, adaptando-a. - O Tejo podia existir sem eles? Lá poder podia. Mas não era a mesma coisa...
E quando estava a arrumar a tralha, dei por mim a cantarolar: - O vento sopra nas fragas / o Sol parece um morango / e o Tejo baila com as vagas / a ensaiar um fandango. E disse para comigo, misturando fantasia e realidade. – Ná... O Carlos do Carmo não me aparece aqui. Ainda está bem vivinho da costa, felizmente.