Aurora contemplou pela enésima vez a foto do bisavô emoldurada a um canto da sala de jantar. Era a reprodução ampliada de uma foto pequena. Nela, um mancebo de pé, com farta bigodaça e olhar penetrante, parecia desafiar o Mundo.
- Já não há homens assim!… - Dizia-lhe, frequentemente, a avó, também chamada Aurora, filha do bisavô André João, anarquista, carbonário e sindicalista revolucionário dos princípios do século XX.
- Não havia greve, intentona ou revolução em que ele não estivesse metido. – Contava-lhe a velha senhora, que muito cedo lhe desvendara a origem do nome Aurora. Era uma homenagem à consigna dos anarquistas: “E ao longe vem rompendo a nova aurora…”
- O que é a aurora? – Perguntava a então pequenita.
- É a claridade que antecede o nascimento do sol. – Explicava a avó. – Os anarquistas queriam com isso significar que a revolução social iria iluminar a vida dos proletários.
- O que é um proletário? – E a avó Aurora lá explicava o significado à neta com o mesmo nome. E a cada nova explicação sucedia-se nova pergunta.
Agora, Aurora já não era a criança que espantava toda a gente dizendo que quando fosse grande queria ser revolucionária, como o bisavô André João. Estava a meio do curso de Ciências Sociais e Políticas e ansiava por conhecer não o seu príncipe encantado mas o seu rebelde, intrépido e iconoclasta. Mas na faculdade e na vizinhança do bairro onde vivia não havia jovem que preenchesse os requisitos.
Naquelas férias, numa pequena praia do litoral Oeste, Aurora enfastiava-se de morte, na esplanada do bar do concessionário. Até os saloios, agora, se pareciam com os betos e os insossos dos grandes centros.
Foi então que reparou num rapaz alto. Nas costas da t-shirt ostentava uma inscrição curiosa. Torceu-se um pouco, para ver melhor, e leu:
Victoria o muerte!
Viva la revolution!
Rapidamente descobriu que o jovem era o pescador que costumava deambular pelo maciço rochoso do canto da praia.
Aurora começou a frequentar o local nesse mesmo dia.
Passada uma semana, Aurora e Vasco eram inseparáveis. Na pesca, na praia, no café e nos passeios nocturnos, que terminavam numa cabana de pesca pertença do avô do rapaz.
Todas as noites, quando se encaminhava para casa, Vasco dava graças por se ter enganado quando vestira a t-shirt que havia trazido de umas férias em Cuba.
Se tivesse vestido a que pretendia, com os dizeres “Um mau dia de pesca é melhor que um bom dia de trabalho”, nunca uma bela Aurora lhe teria iluminado tão intensamente a existência.