- Não sei se hei-de ir ou não à pesca… - Disse eu em voz alta, enquanto me espreguiçava.
- Vai. Não tens nada que fazer. – Respondeu-me a minha cara-metade.
- Quer dizer, por um lado, o tempo está bom… Mas por outro, a maré e o mar… Não sei.
- Decide-te. Pões-te para aí com essas coisas, acabas por não ir e, depois, andas o resto do dia a recriminar-te, porque podias ter ido e não foste.
Pus-me a pensar porque razão as mulheres são mais decididas que os homens. Menos indecisas. Mas não encontrei explicação. – Deve ser genético. – Concluí.
Entretanto, sem eu me dar verdadeiramente conta, o meu cérebro trabalhava afanosamente no assunto, processando informações e sinais de vários órgãos e partes do meu corpo.
- Não, não! – Pressionaram os pulmões, acrescentando: - Este gajo quando está à pesca fuma muito menos, pois tem as mãos ocupadas e o espírito distraído. E nós ficamos privados da dose habitual de fumo e de nicotina a que estamos habituados.
- Sim, sim! – Exclamou o coração. – Eu quero sentir umas batidas mais fortes e apressadas quando ele ferrar os peixes. Vamos à pesca, que eu preciso de exercício.
- Ná, ná! - Disse a pele. – Com este sol e este vento fico toda vermelha na parte da cara, do pescoço e dos braços. Toda queimada. Não estou para isso.
- Vamos, vamos! – Disseram as pernas e os pés. Nós queremos sentir as irregularidades das rochas. É bué de radical. Vamos, que queremos exercitar-nos.
- Fiquemos em casa. – Disse o fígado. Este tipo, quando termina a pesca passa sempre por uma tasca manhosa e enfia no bucho uma série de petiscos e imperiais que só me fazem é mal.
- Ora, ora. Só temos é de ir! – Disseram os braços.- Eu quero sentir os sacões dos peixes. - Disse o direito. – E eu quero controlar o carreto. E então se tiver que dar linha… - Acrescentou o esquerdo.
- Nem pensar, nem pensar! – Disse a vesícula biliar, com o seu habitual azedume. – Isso queima muitas gorduras, obriga-me a trabalhar mais.
- Ora, ora. És sempre a mesma coisa. Sempre do contra. – Disseram as glândulas supra-renais. – Vamos embora e já, que queremos libertar muita adrenalina.
- Isso, isso!. - Exclamaram o coração, as artérias e os músculos. – Queremos adrenalina, Queremos adrenalina! Queremos adrenalina!...
- Não, não e não! – Gritaram alguns neurónios do cérebro. – A pesca é desconfortável e até perigosa.
Sim, sim e sim! – Ripostaram outros neurónios. A pesca dá bem-estar, descontracção e sensação de felicidade.
- Nem pensar! – Disse o estômago. – Este maroto, quando está à pesca esquece-se de comer. E, depois, no fim, enfia um rol de porcarias pelas goelas baixo e eu é que me lixo.
- Vamos, vamos! – Disse a libido. – Este caramelo fica tão descontraído, depois da pesca, que me dá folga, pois deixa de se concentrar em badalhoquices.
- Que é lá isso, dona libido!? Ficamos mas é em casa, que nós queremos entrar em funções. – Disseram os órgãos sexuais, muito abespinhados.
- É melhor irmos. - Disse o sistema nervoso. – Se formos, a pesca vai descontrair-nos, de certeza. Se não formos, talvez nos relaxemos por via sexual. Mas no ponto em que estão as coisas, e atendendo a que os melhores tempos de função já lá vão, o melhor e mais seguro é mesmo a pesca.
- Parou, parou parou!. Exclamou o córtex cerebral. A decisão está tomada.
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- Então, afinal? – Perguntou-me a minha mulher. – Vais à pesca ou não?
- Afinal, sempre vou. – Disse eu, sem saber bem porquê, mas sentindo um impulso psíquico-físico nesse sentido.