Parece que não anda cá nada…
- É verdade, ainda não tive um toque.
- Vai um cigarro?
- Não, obrigado, deixei de fumar há uns meses.
Sentado na falésia, dividindo a atenção entre a ponteira da cana e o acidental companheiro de pesca, Aristides passou em revista o dia em decidira deixar de fumar.
Que dia aquele…
Tinha partido de Lisboa, cedo, rumo à zona das Azenhas do Mar, para uma pescaria à bóia. Antes de estacionar o carro compreendera que o mar tinha embravecido nessa noite, o que inviabilizava a pescaria no local. Mesmo assim, parou, para ver se o movimento das areias tinha assoreado os pesqueiros. Quando entrou no carro, para rumar a outras paragens, nova surpresa. Tinha ficado sem bateria. Depois dos telefonemas da ordem e da espera pelo reboque para uma oficina entre a Malveira da Serra e Cascais, lá resolveu o problema. Seguiu, então, para a zona do Guincho e constatou que, também aí, o mar não estava capaz para o tipo de pesca que pretendia fazer.
Não lhe agradava muito a ideia de pescar na concorrida zona do Estoril, mas, em desespero de causa, concluiu que, dado o estado do mar, era a única opção possível. Arranjou um pesqueiro, numa lage ao lado da praia da Poça, preparou o material e começou a engodar. Quando se preparava para iniciar a pescaria deu de caras com um pescador de chumbadinha, a escassos metros, lançando o isco alegremente para a área engodada. Ficou em brasa… Mas, para evitar quezílias, abandonou o local rumo a uma outra lage, contígua à praia. Após a engodagem inicial e dois ou três lançamentos, constatou, desolado, que meia dúzia de surfistas entravam na água para aproveitar justamente o quebrar das ondas frente ao seu novo pesqueiro. Desistiu.
Entrou em casa visivelmente mal humorado. Livra!... Tinham-lhe acontecido uma série de contrariedades difíceis de imaginar numa só jornada de pesca. Mas, enfim, estava no aconchego do lar. Na semana seguinte a pescaria havia de correr melhor. Foi então que Jacinta, a mulher, lhe deu outra desagradável novidade.
- Roubaram o telemóvel ao Tiago.
- O quê!? Mas como foi isso?...
- Oh pai, foram uns miúdos mais velhos que me convenceram a passar-lhes o telemóvel para as mãos, para me ensinarem como é que eu havia de ouvir músicas e ver vídeos no aparelho…
- Grande palerma, o teu telemóvel não dava para isso. Lorpa! Não viste logo que era um truque?
- Não, pai.
- Paspalhão!... Agora ficas um mês sem telemóvel, para aprenderes.
Aristides acendeu um cigarro, à saída de casa. Ia dar uma volta a pé, para espairecer das emoções do dia mais enervante de que se lembrava. Quando ia a atravessar a rua, um indivíduo magro, com bigode e um boné na cabeça, dirigiu-se-lhe de mão estendida
- Estás bom!... Moras por aqui?...Arsitides correspondeu ao cumprimento, de testa franzida. Não se lembrava de tal criatura.
- Não me estás a conhecer, pois não?...
- Realmente, não…
- Vê lá se te lembras onde nos conhecemos?
Aristides pensou que só podia ter conhecido a personagem no seu primeiro emprego, enquanto caixeiro de uma loja de ferragens.
- Na Torcato & Firmino?...
- Exactamente, pá! E agora, onde é que estás?
- Trabalho em seguros.
- Porreiro… Eu estou em Albarraque, na Tabaqueira.
- …
- Vê lá tu que tinha combinado com um tipo encontrar-me com ele para lhe vender dois pacotes de tabaco, a 10 euros cada, e ele faltou. Na companhia dão-nos uns tantos pacotes por mês e eu não fumo. Ia despachá-los…
-…
- Tu fumas?
- Fumo SG Filtro.
- Óptimo, pá, tenho desses. Queres ficar com dois pacotes?
- Pode ser…
-Anda, moro já ali. Afinal somos vizinhos.
- E, acto contínuo, o sujeito puxou do telemóvel.
- Vou avisar a minha filha, para descer com os pacotes.
Enquanto Aristides esperava que a filha do conhecido descesse com os pacotes de tabaco e que este regressasse de uma leitaria próxima, onde fora trocar a nota de 50 euros que lhe entregara, para efectuarem a transacção, acendeu mais um cigarro.
Passados dois ou três minutos, teve um baque. E se não houvesse filha, tabaco e troco nenhum?... E se estivesse, para completar o dia, qual cereja em cima do bolo, a ser vítima de um esquema marado?... Inspirou uma enorme fumaça e sentiu o sangue a afluir-lhe à face.
De regresso a casa, acabrunhado por ter sido vítima de uma versão rasca do conto do vigário, invectivou-se por ter sido tão ingénuo. Devia ter desconfiado, logo no início, dado que não se lembrava daquela cara de lado nenhum. Depois, deixara que o fulano, habilidosamente, o levasse a indicar um local onde supostamente se haviam conhecido. - Tóto! Grande totó!!! - Disse, entre dentes, referindo-se a si próprio, enquanto abria a porta da rua.
Sentado no sofá, Aristides sentiu a mulher aproximar-se e debruçar-se sobre ele. Ela beijou-o carinhosamente na face e disse:
- Fizeste bem em mudar a tua decisão e prontificares-te a comprar um telemóvel novo ao Tiago, já amanhã. Ele é só um miúdo, coitadinho. Aposto que, na idade dele, também caías numa esparrela que te armassem.
- Na idade dele?.... Quando souberes o que me aconteceu hoje… Olha, já agora, leva daqui o maço de tabaco e o isqueiro. Vou deixar de fumar.