- Então, quando é que vamos à pesca?
- É assim que puder…
Contemplei atentamente o Hipólito. Cara serena, emagrecida, tal como o resto do corpo, e aquele olhar pacífico, diria mesmo bondoso.
Trinta anos. Trinta anos de vida perdidos.
Mas, enfim, assim que daí a uns tantos meses acabasse a fisioterapia, para voltar a ganhar os movimentos essenciais, ainda teria uns anos valentes à frente, para viver e pescar, a sua grande paixão desde miúdo.
Trinta anos. Trinta anos em coma.
Fora em 1983 que tivera o acidente. E desde então ficara adormecido. Até que muito recentemente, e sem nada o fazer prever, eis que renasce. Eu nem queria acreditar quando a mulher, a Eulália, me telefonou.
- Aqui o meu sobrinho apanhou anteontem um robalo de três quilos e tal – Disse eu, abrindo os braços, naquele gesto habitual dos pescarretas, e arrancando um rasgado sorriso ao Hipólito.
- Ao fundo ou à bóia? – interessou-se vivamente o ressuscitado.
- Foi ao spinning. – Respondeu o meu sobrinho
- Ao quê?...
- Ao corrico. – Esclareci eu.
- Na semana passada também apanhei um, à volta dos dois quilos, mas foi a fazer surfcasting. – Prosseguiu o Gonçalo.
- Ao fundo, foi a pescar ao fundo. – Antecipei-me eu a esclarecer o surpreendido Hipólito.
- Um amigo meu, também na semana passada apanhou um com quase três quilos, no beach ledgering.
- A pescar à chumbadinha, da praia. – Traduzi eu.
- O que lhe valeu foi ter um shock leader. – Acrescentou o meu sobrinho.
- Um quê?...
- Uma ponteira de linha mais grossa em relação à do carreto. – Esclareci.
- É que ele estava com uma main line de 0,18. – Acrescentou o Gonçalo.
- Ahn?...
- Main line é a linha madre, a que enche o carreto.
- E ainda por cima a cana tinha uma stiff tip. – Enfatizou o meu sobrinho.
Olhei para a careta que o Hipólito fez e apressei-me a esclarecer. – Ele quer dizer uma ponteira dura, rígida.
- Eu, a pesca que mais aprecio é a do spinning, com jerkbaits. Prosseguiu o meu palrador sobrinho.
Aqui chegados, o Hipólito fez uma careta de todo o tamanho.
- É a pesca do corrico com amostras de vinil, em forma de um pequeno peixe. E o vinil é uma substância plástica aborrachada. - Apressei-me a tranquilizá-lo.
- Mas esperem lá um bocadinho… - Disse o baralhadíssimo Hipólito. – Eu já sei que o muro de Berlim foi derrubado, que o bloco comunista implodiu, que há livre circulação e moeda única na maior parte dos países da Europa. Também já me explicaram o que é a globalização e a Internet. Mas elucidem-me lá porque raio é que agora se usam termos em inglês para as coisas comezinhas da pesca…
- Pois… pá. Olha, foi uma coisa que se foi infiltrando a pouco e pouco. Foram os logistas, os pescadores cagões, aqui como o meu sobrinho, as revistas de pesca, enfim…
- Mas o triste consolo, ou desconsolo – prossegui - é que o liguarejar em inglês não é só na pesca. Está um pouco por todo o lado e, em especial, no mundo empresarial e no académico. Hoje, a maior parte dos livros, nas faculdades, especialmente nas áreas técnicas, já não são traduzidos. São todos em inglês, que passou a ser uma nova espécie de Esperanto, de língua universal. Isto também tem a ver com a tal globalização. Ganha-se numas coisas, perde-se noutras. A língua de Camões, então, hás-de ver como ela é hoje em dia maltratada…
- Estou a compreender. - Disse, com ar resignado, o bom do Hipólito, que logo acrescentou. – É pá, lembras-te da Gibóia?
- Então não lembro! – Exclamei, visionando mentalmente a velha senhora, a Dra. Olímpia Silva, por alcunha a Gibóia, seca, severa, nossa professora de português, no Liceu Gil Vicente.
- Lembras-te que ela não queria que empregássemos o termo cliente, defendendo que se devia dizer freguês, porque cliente era um galicismo, um termo originariamente francês?
- Exactamente, a boa da Gibóia deve dar voltas e voltas na campa.
- Qual quê! – Disse o Hipólito, rematando com o velho sentido de humor que sempre tivera. – A Gibóia, hoje, lá onde estiver, é uma ventoinha.