A maioria dos hospitais não tem em stock o soro para combater as picadas venenosas da víbora-cornuda – a cobra que nas últimas semanas tem ferido pessoas de Norte a Sul do país. É que, segundo os especialistas, o risco de se ser mordido por este réptil aumenta no fim de Agosto e em Setembro, época em que o animal sai da vegetação para acasalar.
Fernando Tomé, de 42 anos, foi picado quando, no final de Agosto, passeava na sua aldeia (Póvoa de Meadas) e foi socorrido no hospital de Portalegre. «Apesar de estarmos tão perto do Parque natural de São Mamede e de haver vários casos de mordidelas na região, o hospital não tinha sequer o antídoto contra víboras para me dar», denuncia o motorista de autocarros da Câmara Municipal de Castelo de Vide, que ficou três semanas internado e só teve alta há uma semana: «Foi um grande susto. A picada ia-me custando a perna. O pé não chegou a gangrenar, mas já não tinha pulsação na ponta dos dedos».
Fernando esteve quatro horas na urgência à espera de ser internado. Os médicos tentaram descobrir o tipo de serpente e encontrar o soro antiofídico, que o hospital não tem disponível.
«Não temos o antídoto disponível», admite Hugo Capote, director da urgência do Hospital de Portalegre, explicando: «Ligámos para o Centro Anti-Venenos (CIAV) para saber se seria indicado o soro, mas alertaram-nos que para este tipo de víbora o soro nem sempre é eficaz e está destinado apenas a casos muito graves». Por isso, esclarece o médico, optou-se pelo «tratamento habitual com antibióticos».
A maioria dos hospitais não tem soro por as administrações alegarem que são raros os casos em que a sua utilização é imprescindível.
Em Portalegre, onde todos os anos surgem casos de pessoas atacadas pela víbora, que abunda no Parque de São Mamede, o soro só foi usado uma vez na última década. «Como os hospitais não tinham o soro disponível, pedimo-lo a um hospital espanhol», recorda Hugo Capote.
Segundo Fátima Rato, responsável do CIAV, este soro antiofídico é importante sobretudo «para casos mais graves». A responsável realça ainda que a «sua utilização fica ao critério dos hospitais porque há outros tratamentos com antibióticos». Além disso, a especialista alerta que o uso do soro antiofídico também pode ter efeitos secundários graves, como choque anafilático, cabendo, por isso, ao médico decidir caso a caso.
Soro salvou actor de Morangos com Açúcar
A verdade é que foi o soro que curou o pequeno actor dos Morangos com Açúcar que recentemente foi picado no pé, perto de casa, em Belas, Sintra, por uma víbora-cornuda.
É que João Pacheco, de 13 anos, foi tratado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, um dos poucos do país que possui o soro em stock.
Dias antes, já outra criança tinha dado entrada no mesmo estabelecimento com ferimentos graves semelhantes. «O caso era grave. O rapaz estava a fazer um pic-nic em Sintra e foi mordido numa mão porque mexeu na cobra com um pau», contou ao SOL Maria do Céu Machado, directora do serviço de pediatria do hospital.
A médica confirma que tanto no caso de João Pacheco como neste último «foi usado o soro antiofídico, que o Hospital tem em stock e está destinado a situações graves».
Maria do Céu Machado explica que o soro ajuda a travar mais rapidamente a progressão do veneno na corrente sanguínea do que os outros medicamentos alternativos. E, além disso, nota, aquele produto ajuda a reduzir a intensidade de outros sintomas provocados pelo veneno.
«É essencial dar este soro logo, porque quando a cobra morde injecta no corpo toxinas que podem provocar choque anafilático ou outros problemas graves».
Mas o elevado preço do soro, o prazo de validade apertado e o facto de as picadas muito graves não terem sido frequentes nos últimos anos levaram a que os stocks existam em apenas dois hospitais: Santa Maria, em Lisboa, e São João, no Porto. «Os outros hospitais podem pedir directamente ao laboratório», refere Maria do Céu Machado.
100 chamadas para o INEM
Todos os anos o CIAV recebe uma centena de chamadas motivadas por picadas deste e de outros répteis – quer de doentes, quer de técnicos de saúde pedindo indicações de tratamento. Até meados de Setembro, este serviço do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) recebeu 87 chamadas.
De acordo com os médicos, as crianças e os idosos são os grupos mais vulneráveis às mordidelas destas serpentes e, se forem mordidos, devem recorrer ao hospital: os mais novos por terem menos massa corporal e o veneno espalhar-se rapidamente; e os mais velhos por sofrerem de outras doenças.
Setembro é mês de maior risco
É no final do Verão e na Primavera que se registam mais casos de mordeduras de víboras-cornudas – uma espécie que pode atingir os 80 centímetros e que existe em algumas serras portuguesas, mas é rara nas cidades.
A maioria das pessoas é picada precisamente no final de Agosto e em Setembro. «A víbora cornuda em Setembro está mais activa porque é a época de acasalamento e as fêmeas e os machos abandonam a vegetação. Por isso, há maior risco de encontros com humanos», explicou ao SOL José Carlos Brito, biólogo do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto, com vários trabalhos publicados sobre este réptil.
O mesmo acontece no início da Primavera, quando a víbora sai de hibernação.
O biólogo diz que este réptil caça por emboscada, não se mexe e não foge. Por isso, muitas vezes quem é mordido só se apercebe da presença da cobra depois de ser picado. Foi isso que aconteceu a Fernando Tomé: «Só vi a víbora depois de sentir a picada no pé e ainda a consegui matar».
"Sol"