A história de um cão que nasceu para caçar
Esta é a história de um cão. Um cão que nasceu com 4 patas, umas orelhas e um focinho. Um cão de raça. Por acaso, uma raça de caça. Um cão como tantos outros. Um cão que tem fome, tem sede e tem frio. Um cão que, como tantos outros, precisou de um lar mas, simultaneamente, de uma coisa que o fizesse feliz. Hoje esse "cão" conta-nos a sua história..."Eram 23:46h quando saí da barriga da minha mãe. Já estava bastante apertado para estarmos todos lá dentro, apesar do quentinho que sentiamos. Saímos muito bem e cá fora tinhamos uma luz vermelha que também nos aquecia. Que bom que foi sentir-me no Mundo real. Ouvia constantemente vozes de crianças e de adultos. Iam dizendo várias coisas, nomeadamente "Que crescidos!"; "Que bonitos que são!" ou "Que gordos, comem tanto!" Sentia que gostavam mesmo de nós e estavam contentes connosco e com a nossa mãe, que era uma guerreira.
Aprendemos a andar, a comer nestum e depois ração, aprendemos a brincar e a morder tudo o que nos rodeava e aprendemos a não ter medo de nada, porque os nossos donos ensinaram-nos tudo. Eu era muito feliz e todos brincavam comigo.
Um dia... Um belo dia... Entram outras pessoas no nosso canil. Nunca mais me esqueço: um homem, uma mulher e duas crianças. Eles falavam com os meus donos, riam-se, trocavam várias histórias e de repente olham para mim e dizem "é este". Eu não estava a perceber nada do que estava a acontecer ali. Uma das crianças pegou em mim ao colo e deu-me muitos miminhos. Eu estava deliciado mas, ao mesmo tempo, com medo. O que me iriam fazer? Lembro-me perfeitamente da última coisa que o meu dono lhes disse "ele é um cão de caça" e os senhores responderam "mas nós não somos caçadores. Queremo-lo para cão de companhia, e vai estar dentro do apartamento, mas claro que iremos passear todos os dias com ele". E o meu dono fechou os olhos, olhou para mim e com um ligeiro tremor na voz disse "pelo menos, tentem levá-lo ao campo, para correr. Que sejam felizes com ele e ele com vocês!".
Olho para o meu dono, que me dá uma festinha na cabeça. Não percebo o que está a acontecer mas, numa fração de segundos, entro para um carro topo de gama e vou-me embora dali. Não tive tempo de me despedir da minha mãe nem dos meus irmãos. Estou triste; no entanto, o menino que me leva ao colo vai o tempo todo a dar-me festinhas e a falar comigo e isso também me faz sentir bem.
Conheci uma nova casa e um novo mundo. Nesta casa não tenho chão de tijolo, mas carpetes enormes e lindas. Nesta casa não durmo com mais cães; durmo sozinho na cozinha, mas muito quentinho. Tenho comer várias vezes ao dia e brincam muito comigo. É divertido e estou a começar a gostar muito de aqui estar. Todos me tratam bem e gostam de mim. Brincamos muito! Às vezes faço alguns estragos, principalmente, nos chinelos dos meus donos e eles não gostam e gritam comigo. Outras vezes também faço xixi nos tapetes. Eles aí até me batem e dizem que tem de ser lá fora. Todos os dias vamos à rua e eu adoro. Quer dizer, quase todos os dias... Há dias que eles dizem que não lhes apetece, porque está muito frio ou a chover. Eu até compreendo, mas onde posso fazer xixi nestas alturas?
No dia 3 de Março fiz 1 ano de idade. Fizeram-me uma festa. Com bolo e tudo! E deram-me ossos. Estava tão feliz. Tinha a certeza que esta era família perfeita para mim e ainda bem que o meu dono me deixou vir com eles. Havia só uma coisa que me estava a deixar um bocadinho triste. Quando passeavamos, eu tinha de ir com uma trela. E isso nunca me permitia correr livremente ou correr atrás dos pombos, que eu acho que iria adorar. Eles provocam-me qualquer coisa, mas não sei explicar muito bem o quê. Porque é que eles nunca me tiravam a trela? Secalhar era proibido, não sei. Mas pelo menos, alguns dias eles chegavam a passear 30 minutos comigo na rua; mas diziam que eu puxava muito a trela e não tinha educação.
Passaram vários meses... Estavamos em Julho, creio eu... E as coisas começaram a ficar muito diferentes. Eu era o cão mais feliz do mundo, acreditem, mas sentia sempre que me faltava qualquer coisa, não sei explicar o quê! Sentia que não era feliz a 100% (mas será que alguém o é)? Então... As coisas não andavam muito bem. Mas eu acho que nunca fiz nada que chateasse os meus donos. Mas ouvia-os constantemente a dizer "Ele está enorme"; "Nunca nos disseram que ele ficaria tão grande e tão enérgico"; "Nem consigo quase levá-lo à rua, porque ele só quer é correr" ou "Ele come muito"; "Ele é bruto a brincar com os miúdos"... Ora, como é que (quase) de um dia para o outro eu me tornei assim tão mau? É normal que eu não tenha, por vezes, a noção do meu tamanho ou da força que tenho; mas não é por mal... Nada do que faço é por mal; pois os meus donos são a coisa que eu mais gosto na vida!
Um dia... Outro belo dia... Fomos passear. Os miúdos não foram e eu achei estranho, mas podiam ter ficado em casa a jogar na televisão como eles adoram. E a minha dona também não foi. Ela estava muito triste e olhou para mim com lágrimas nos olhos, mas eu não percebi o porquê. Fui com o meu dono no carro que, outrora, me tinha ido buscar. Andamos a alta velocidade até chegarmos a um sítio com muitas árvores e muito mato. Eu nem queria acreditar; ele tinha-me levado para o campo para eu correr, como o meu primeiro dono lhe tinha pedido. Estava muito feliz. Ele abriu a porta e eu saí com uma alegria estranha... Uma alegria que eu nunca tinha vivenciado. Finalmente poderia correr atrás dos pombos e dos pássaros, o mais que eu pudesse e quisesse... Estava a dar saltos de alegria... O meu dono entrou para o carro e arrancou... Com o pé a fundo no acelarador... Nunca mais o vi... Aliás, nunca mais os vi! Ainda corri para ele me ver, podia-se ter esquecido de mim... Mas não! A intenção era que eu ficasse ali... Sozinho... Desprotegido... Com frio e sem ninguém...
Os dois dias a seguir foram os piores da minha vida! Não tinha nada nem ninguém. Consegui encontrar uma pequena ribeira para beber água e deitei-me. Deitei-me numa sombra, esperando que alguma coisa acontecesse. De mal ou de bom, mas que acontecesse.
No dia a seguir, ainda estava a dormir e ouço umas vozes. Acordo sobressaltado e vejo dois homens com quatro cães na minha direção. Encolhi-me todo, com muito medo... Já não tinha forças para fugir! Ouvi os homens a dizer "é um perdigueiro português, mas tem ar de estar abandonado. Será que foi algum colega caçador que o abandonou, por não prestar para a caça?";
"Caçador não; matador", dizia o outro. Um deles agarrou em mim ao colo, e colocou-me numa caixa, numa carrinha. Olhei-o nos olhos e agradeci-lhe. Por tudo! E as lágrimas escorriam-me pelos olhos... Mas os humanos não compreendem que nós, cães, também choramos e, por isso, olharam-me somente de forma ternurenta e fomos embora...
Depois... Depois só me lembro que cuidaram de mim... Deram-me comida e água e um abrigo. E amigos novos...
Passaram duas semanas e eu já me sentia muito bem... Todos os dias olhava para aquele homem caçador que me tinha salvo a vida. E esse mesmo homem, um dia, disse-me "hoje vamos à caça".
Eu nem queria acreditar. Parece que a palavra caça tinha despertado algo em mim... Fiquei eufórico e ainda nem sabia o que iria fazer...
Entramos num jipe... Os meus amigos foram todos comigo... Fizemos uma longa viagem (ainda era de noite, mas já estava a amanhecer) e, subitamente, o meu novo dono caçador abriu-nos a porta... Os meus amigos sairam todos contentes mas eu tive medo... Será que eu poderia sair sem trela? Sair livremente? O meu dono disse-me "Anda!"
Eu saí, a medo. Percebi que sim, era possível estar livre e sentir-me livre. O meu dono já tinha preparado tudo para a caça e disse "Vamos"... Todos começam a correr... Aliás, não era a correr, era a caçar... Numa fração de segundos comecei também a correr... Ou a caçar... E senti-me o cão mais feliz do mundo; o cão que tinha conseguido atingir a 100% a felicidade (e afinal é mesmo possível; e com tão pouco).
Corri e cacei... Várias vezes... Vários meses... Vários anos... Fui livre... Fiz aquilo que melhor sabia e nunca ninguém me tinha ensinado. Aprendi que tinha de parar, para que as peças de caça não me fugissem e para que o meu dono as matasse, para depois a minha dona fazer o jantar... Aprendi que se as fosse buscar, depois de mortas, e as entregasse ao meu dono, ele ficava contente...
E, de repente, lembrei-me da minha mãe... Lembrei-me de estarmos ainda na barriga dela, logo no início, e de termos ido à caça... Da alegria que ela nos transmitia... Afinal, o meu primeiro dono era também caçador. Porque é que ele não ficou comigo para eu fazer isto mais cedo? Para eu ser feliz desde logo?
Hoje, passados 10 anos, estou com o meu dono e o veterinário que está a dizer "não há nada a fazer". O meu dono está a chorar... As lágrimas correm-lhe pela cara e consigo sentir o quão triste ele está. Eu não me sinto nada bem... Estou muito cansado, com muitas dores... Deve ser por isso que estamos no veterinário, porque eu já não me sentia bem há algum tempo. O meu dono diz "como é que vou conseguir fazer isto? Um dos meus companheiros de caça, que tantas alegrias me deu..."
Eu percebo que deve estar a acontecer alguma coisa de mal, e fico triste... As lágrimas correm-me também... Não quero deixar o meu dono... Não quero deixar de ir à caça, de correr atrás daquelas lebres que me tramam sempre; de conseguir parar as galinholas sem elas me sentirem; de fugir de medo quando vejo um javali nas silvas... Não quero ficar sem a minha felicidade!
O médico diz "Não há mais nada a fazer, tenho de lhe dar a injeção".
O meu dono não diz nada... Chora compulsivamente, como um bebé...
Sinto uma picada e fico logo zonzo, com muito sono... Olho para o meu dono, uma última vez e agradeço-lhe por tudo... Por me ter mostrado o que era a caça, o que era sentir-me livre e por me ter feito o cão mais feliz do mundo e por nunca me ter abandonado ou esquecido...
Obrigada dono! Obrigada por me mostrares que a caça era a minha forma de estar na vida... Obrigada por me mostrares que nós cães também podemos ser felizes, mesmo com um dono caçador..."
ML.
Fonte: diariodeumacacadora.blogs.sapo.pt