- Então, ainda continuas a ir pescar para a Doca da Marinha? – Perguntei, na ingenuidade dos meus 15 ou 16 anos, a um outro puto conhecido das deambulações piscatórias pelas muralhas de Lisboa.
De quando em vez encontrava-o e ele maravilhava-me com fantásticas pescarias na então única doca interdita da capital, só acessível aos marinheiros e sem sombra visível de actividades piscatórias. – Tenho um tio que trabalha lá e me deixa entrar para pescar. – Tinha-me ele explicado.
Robalos, meus amigos, robalos!... Era o que ele dizia que apanhava.
Naquele dia contou-me que tinha apanhado mais de vinte. E eu, ali, embasbacado e pesaroso de não ter a sorte de ter um tio marinheiro que me desse uma goela daquelas.
Foi então que…
Foi então que o puto robaleiro, no seu afã de dar colorido à historieta, disse: – São lindos, pá, encarnadinhos… Dá gosto apanhá-los.
- Eh pá, espera aí!... Os robalos não são encarnados. São prateados. – Disse eu, com a sensação súbita de ter dado um monumental trambolhão da minha credulidade abaixo.
- Ai isso não sei, mas lá que um tinha uma mancha vermelha, lá isso tinha. – Respondeu-me.
A conversa acabou ali. Despedi-me asperamente e afastei-me a recriminar-me mentalmente por não ter topado logo que o meu conhecido era um grandecíssimo aldrabão. Qual robalos, qual Doca da Marinha qual quê!... Falta de vergonha e muitíssima lata, isso sim.
Passados cerca de 45 anos sobre o episódio, voltei a rememorá-lo aqui há tempos.
O rastilho da lembrança foi a confidência de um autoproclamado grande pescador, na casa dos cinquenta anos, lojista da especialidade e monitor de workshops de surfcasting, que me afirmou, impante de satisfação, ter apanhado 74 sargos.
- Eia, 74!... - Disse eu, expressando admiração exterior e rindo desalmadamente por dentro.
- Mas foi a Norte. – Disse o artista, com um certo ar conspirativo, acrescentando: - E, pelo meio, apanhei também umas ferreiras.
- Ferreiras, a Norte!?... - Disse eu, franzindo o sobrolho. – É boa!... Que eu saiba elas só costumam sair de Sines para Sul.
- Mas foi em Sines. Foi na Praia do Norte. – Tratou de ajeitar o tratante.
- Ah! – Exclamei eu, verdadeiramente extasiado com o rápido jogo de cintura do milongueiro.
Posteriormente, a um meu parceiro de pesca, o embusteiro localizou a fantástica pescaria já não na Praia Norte de Sines mas em S. Torpes. E pela descrição da pescaria, “o peixe até se via ao cimo de água”, o meu colega desmascarou-o dizendo que, assim sendo, eram tainhas. O aldrabão ainda torceu a coisa dizendo que andava outro peixe por baixo. Mas o meu amigo, conhecedor dos ditos locais logo tratou de o desarmar mais uma vez, alvitrando que seriam salemas. “Também lá andavam, também”, admitiu o trapaceiro, que já não teve coragem de insistir na versão da grande pescaria de sargos e desviou a conversa para outras bandas.
Depois destes episódios, pus-me a pensar.
Quando eu era miúdo, era normal que um ou outro rapazola se esticasse. Mas naquele tempo eram raros os homens com barba na cara que mentissem descaradamente sobre as pescarias que faziam.
Hoje, infelizmente, é prática corrente de muitos pescadores regulares.
Assim sendo, das duas uma: ou o sentido de seriedade e decência se esboroou algures; ou há tipos já com idade para serem avôs que continuam a ser uns autênticos garotos.
Por isso é que às vezes eu desabafo para os meus parceiros de pescarias, a propósito de certos cromos.
– Este é dos tais que apanha robalos encarnados…
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Meus caros
FELIZ NATAL e BOM ANO ANOVO.
E cuidado com aquela malta que pesca “robalos encarnados”.