Estava eu muito descansado da vida a pescar nos Patudos, quando uma dor de barriga me fez afastar para junto de uns arbustos. Rodeei-os e vi-me perante uma espécie de grande cápsula, parecida com algumas casas de banho públicas individuais, que funcionam com a introdução de uma moeda.
“Fantástico”, disse para comigo, pensando que não era à toa que se pagava o que pagava para pescar no local. Procurei a ranhura para meter a moeda que abriria a porta, mas não a encontrei. Experimentei empurrar a porta e esta abriu-se.
Uma vez lá dentro tomei consciência de que, afinal, aquilo não era propriamente uma casa de banho. Foi então que toquei em qualquer coisa. Umas luzes começaram a piscar e um silvo intenso ecoou nos meus ouvidos, culminado com um estampido abafado. Depois, a porta abriu-se, como por artes mágicas.
Saí, meio abananado, já sem qualquer dor de barriga, e voltei para a beira de água. Notei então que as pessoas que pescavam na margem fronteira tinham desaparecido. Em compensação, uns 250 metros à minha esquerda estava agora um pescador, acompanhado por três moças em biquini, refasteladas em espreguiçadeiras, e por um homem que lançava engodo e fisgava sementes para o pesqueiro do primeiro.
“Estranho”, pensei. “Passa-se aqui qualquer coisa”. Foi então que notei que a pequena barragem estava rodeada por uma cerca de arame electrificado. Mas não era tudo. Bem vistas as coisas, o local estava muito diferente. As margens e toda a envolvência estavam ajardinadas com muito bom gosto. E na parte oposta ao paredão erguia-se um edifício com uma esplanada exterior, que tinha todo o aspecto de ser um restaurante. Por detrás, uma outra construção dava a ideia de ser uma pequena estalagem.
Reparei então num jardineiro, que estava a tratar da relva, a uns 150 metros à minha direita. Aproximei-me, para tentar desvendar o que se passava.
- Bom dia. – Disse eu, acrescentando: - O amigo pode informar-me desde quando é que a barragem está assim, toda ajardinada? Estou confuso, pois há uns minutos atrás isto era muito diferente…
O homem, já idoso, olhou para um lado e para o outro, com um ar alucinado. Depois, hesitou. Por fim, disse: - Saia já daí. Rápido! Entre ali na carrinha, que eu já lá vou ter consigo.
Assim fiz, contagiado pela postura assustada do velho. Breves minutos depois voltou para a carrinha, pondo-a rapidamente em andamento, na direcção de um portão. Esticou o braço e utilizou um cartão magnético para abrir a portada. Depois, conduziu como um louco, durante uns minutos, por uma estrada de terra, até que parou, junto a um sobreiro.
- Você é maluco, homem?!... – Disse, fitando-me de olhos muito abertos. – Dê graças a Deus por estar vivo. E eu próprio pus a vida em risco para o tirar de lá. Francamente!... Então você não sabe que os pescadores furtivos podem ser abatidos no local?...
- Furtivo!? Abatido!?... Mas que história é essa?
- Não me diga que não conhece o decreto? Saiu há já cinco anos, em 2059.
- Quando?... Mas em que ano estamos?
- Por amor de Deus! Mas de onde é que você saiu?... Estamos em 2064, ora essa.
Contei a minha aventura de viajante do tempo ao jardineiro. E inquiri-o sobre a estranha realidade piscatória deste tempo que para mim ainda considerava futuro.
O bom homem contou-me então que a pesca lúdica, de que fora praticante na juventude, era actualmente uma coisa rara e apenas acessível a milionários e aos seus convidados. Quem pretendesse intrometer-se podia, pura e simplesmente, ser abatido a tiro. Isto, porque desde meados dos anos 40 o peixe tinha praticamente desaparecido. E, agora, a pesca era apenas praticada em pouquíssimos locais. Mas, para isso, o peixe tinha que ser criado e desenvolvido artificialmente, em laboratórios. Mesmo assim, os repovoamentos eram constantes. Isto, porque as carpas e os pimpões, as únicas espécies passíveis de subsistirem, adultas, algum tempo na Natureza, só se aguentavam vivas cerca de oito semanas nas charcas de pesca.
- Devido a um conjunto de factores, de que o ligeiro aquecimento global foi o mais importante, ocorreram grandes mortandades, nos rios, nas barragens e no mar. – Disse-me o velho. – Depois, tentaram repovoamentos sucessivos, sem sucesso. Até que, finalmente, fruto de severas medidas ambientais, os peixes conseguiram reproduzir-se, embora em muito menor escala que antigamente. Mas os alevins nunca cresceram. Ficaram sempre do tamanho de alevins, com meia dúzia de centímetros ou nem isso. Tanto no mar como na água doce.
- Mas isso deve ter tido efeitos devastadores em muitas outras espécies, dada a rotura dos ecossistemas associados. – Disse eu.
- Claro! Só que agora já houve importantes recuperações, embora com novas nuances e características.
- Então e como é que os muito ricos aparecem a pescar? Os milionários nunca se interessaram pela pesca, salvo alguns que faziam o Big Game a bordo dos seus iates. Os seus recreios eram mais o golfe, o ténis, a caça grossa, o hipismo…
- Pois, sabe como é… Como passou a ser uma coisa restritíssima, passaram a interessar-se. Hoje, a pesca à linha, praticada apenas em charcas, é muito mais elitista que o golfe e outras actividades lúdicas dos possidentes. Uma coisa como a caça aos elefantes era antigamente. Hoje, já só há um ou outro elefante em cativeiro. A vida mudou muito, meu amigo. Actualmente, a população mundial é apenas um terço do que era há cinquenta anos atrás.
Foi então que começámos a ouvir um bip-bip continuado, a pouca distância. O meu interlocutor ficou em pânico, temendo que o som fosse proveniente de alguma aparelhagem de eventuais seguranças no nosso encalço. Mais calmo, atrevi-me a sair da carrinha e tentar perceber o que se passava. Vi, surpreso, que a cápsula que estivera na origem da minha viagem estava agora junto ao sobreiro onde estacionáramos.
- Bom, meu amigo, parece que tenho que me ir embora. Mal por mal, antes em 2014 do que na actualidade. Pelos vistos, ainda terei duas dezenas e meia de anos para me divertir com a pesca. – Posto isto, abracei o meu salvador e entrei na cápsula.
Uma vez no interior da geringonça, antes de fechar a porta, pus-me a observar bem o que parecia ser um painel de instrumentos. Num mostrador digital estava inscrito o ano de 2064. Carreguei no botão da direita e o número passou para 2065. Tentei o botão da esquerda e os números regrediram. “É isto mesmo”, pensei. Manobrei até 2014. Preparava-me para carregar num botão que tinha a palavra inglesa “GO” inscrita, quando parei.
Pus-me então a pensar, a pensar… Passados uns segundos, avancei, decidido, para o botão regressivo. Qual 2014, qual quê!...
O piscar das luzes, o silvo intenso, mais o estampido abafado da coisa, já não me assustaram. Assim que a porta se abriu, saí sorridente. Estava junto à margem de uma barragem. Ali perto, dois homens abriam o que parecia ser uma pequena vala. Mais longe viam-se pescadores em acção de pesca.
- Boa tarde. - Disse eu para os cavadores. – Isto aqui é a Barragem Trigo de Morais, não é? E os senhores estão abrir uma vala para enterrarem dezenas de milhares de bogas, depois da pesagem do concurso, certo?...
- É isso mesmo, amigo. - Respondeu um.
Respirei fundo. Espreguicei-me. Sorri. E perante o olhar de espanto dos dois homens, gritei:
- VIVA O ANO DE 1964!