Um anjo conduziu-me, com solenidade, até aos aposentos da segunda figura da Santíssima Trindade. O Pai estava muito ocupado, pelo que seria recebido pelo Filho, Jesus Cristo, ele próprio.
- Então, irmão, que desejas?
- Eu quero reencarnar, Senhor. Quero voltar à Terra para ser presidente de Câmara.
Cristo trocou um olhar com S. Pedro, também presente, na qualidade de assessor do filho de Deus.
- Presidente de Câmara… Hum… E para quê? Não te chega regressar para ires à pesca, que era o que te dava mais gozo fazer enquanto por lá andaste?
-Tenho um objectivo específico, Senhor. Um desejo que gostaria de concretizar.
- Ah, sim? E qual é?
- É aproveitar o meu poder e influência, enquanto autarca, para fazer uma estátua, ou melhor dizendo, um conjunto escultórico.
- E pode saber-se a quê?
- Às boas pessoas.
- Às boas pessoas!?... O quê, mais santos?...
- Não senhor, não é propriamente a santos. É para homenagear as pessoas vulgares, os meros pecadores que são boas pessoas.
- Bom… As estátuas normalmente representam vultos que se distinguiram por alguma coisa. Vultos da medicina, da política, da ciência, da literatura, até do desporto. Agora pessoas comuns…
- Pois aí é que está. As boas pessoas hoje estão tão desvalorizadas que penso que devem ser homenageadas.
- Faz sentido. Mas quem é que vais homenagear enquanto boa pessoa. A coisa é complicada.
- Está tudo previsto, Senhor. Será um conjunto escultórico a celebrar as boas pessoas, em geral. Uma espécie de monumento ao soldado desconhecido, só que destinado às boas pessoas.
- Bom, não está mal pensado. E, já agora, de onde te veio essa ideia?
- Foi de uma entrevista publicada no Diário de Notícias. Foram falar com o primeiro treinador do Cristiano Ronaldo, e, no fim, o sujeito, referiu o acompanhamento que o pai dava ao miúdo, quando ele jogava nas equipas de miúdos do Andorinha e do Nacional. A entrevista terminava com o treinador a dizer que Dinis Aveiro, o pai do craque, “era uma boa pessoa”.
- ….
Creio que nunca tinha visto impressa uma declaração destas; de alguém ser vulgar referido como uma boa pessoa. Mais!... Creio que se pedisse a um político, a um jovem universitário, a um empreendedor, a um simples administrativo ou a um operário para classificarem, entre nós, sem ninguém a ouvir, o Sr. Dinis, ouviria coisas como “bêbado”, “falhado”, “desgraçado”, “Zé-ninguém”, “borra-botas”. E por aí fora.
- …
- E, no entanto, e aqui é que está a questão, ele até podia ter sido isso tudo, mas, para além de tudo isso, era uma boa pessoa! E quanto a mim, isso conta mais que o resto. Ou melhor, isso é o que verdadeiramente conta.
- …
- O resto é obra da crueldade, da leviandade e da mesquinhez humana, que julga pela rama sem descortinar aquilo que é central e importante.
Cristo trocou um olhar com o S.Pedro. Depois olhou para mim, pensativamente. Voltou a fixar o santo e disse:
- Pedro, siga p’ra bingo. Manda lá este bem intencionado à Terra.
Despedi-me, enquanto os dois comentavam a paixão do grande Cristiano pela pesca. Afastei-me devagarinho para continuar a aperceber-me do diálogo dos dois e, às tantas, o Filho de Deus disse:
- Pedro organiza lá as coisas de molde a que não aconteça a este lunático o que me aconteceu a mim há dois mil anos. E já agora, quem achas que é melhor, o Ronaldo ou Messi?…