- Mas, Sr. Miranda, eu já tenho tanto serviço…
- Ora, Nunes, por amor de Deus, se tem muito trabalho dê isso a um dos seus subordinados. Caramba, você é o chefe de secção.
- Mas, Sr. Miranda, o pessoal também está assoberbado. Se tentar dar isto a algum, vai-me responder que não pode, que não tem tempo.
- Ora, Nunes, deixe-me dizer-lhe o seguinte: os homens estão tão assoberbados que passam boa parte do tempo a ver a lixarada que lhes mandam para os mails e a visitar um ou outro site pornográfico. As mulheres, para além do entretém dos mails malandrecos, ainda retocam regularmente a maquilhagem e telefonam para tudo o que é família e amigas.
- Desconheço isso, Sr. Miranda, nunca reparei…
- Pois, você está sempre embrenhado nas suas múltiplas tarefas, eu sei. Mas não pode ser…
- Mas o serviço… É muito.
- Ora, Nunes, você nunca ouviu falar em descentralização?
- Efectivamente, já.
- Então descentralize, homem!
- Mas como, Sr. Miranda? Se eu tentar passar trabalho para o pessoal, todos me vão dizer que já têm que chegue.
- Ora, Nunes, é tudo uma questão de apresentação e de gestão das expectativas. Se você, simplesmente, disser que lhes vai dar mais trabalho, todos vão resistir.
- Mas então…
- O segredo está em sugerir, com uma certa subtileza, que a tarefa que você quer descentralizar é uma coisa transcendente, só atribuída aos eleitos. De caminho, faça de conta que está indeciso entre oferecer aquela fantástica oportunidade de valorização profissional e, quiçá, de promoção, à pessoa que está à sua frente ou a um outro colega. Levante o braço, estique o indicador para o tecto, arqueie as sobrancelhas… A pessoa pensará que você quer significar que o trabalho vai ser apreciado pela própria administração. A pessoa em questão não só vai aceitar o trabalhinho como vai implorar que o mesmo lhe vá parar às mãos. E, no final, até lhe agradecerá… Percebeu?
- Bom, postas as coisas nesse pé, creio que sim.
- Então, força, Nunes. A um chefe não se exige que trabalhe, mas sim que apresente resultados. Descentralize, homem.
Nunes passou a vista pela secção e pelo pessoal, concentradíssimo no trabalho. Dobrou o jornal. Bocejou. Esticou as pernas e espreguiçou-se discretamente. A sua vida laboral tinha mudado quase 180 graus. E tudo graças ao Miranda, o seu chefe de departamento, com aquela bendita dica da descentralização. E o mais curioso é que tinha corrido tudo com uma facilidade impressionante, tal como profetizara o Miranda. E o pessoal não só tinha passado a trabalhar mais, como andava satisfeitíssimo por isso.
No início da manhã seguinte, Nunes estava chateado. Tinha que ir ao tribunal levar papelada da instituição. E não lhe apetecia nada. “Um tipo quanto menos faz menos vontade tem de fazer”, pensou. Foi então que engrenou para pensamentos dignos de um verdadeiro chefe descentralizador e modernaço. E se tentasse resolver as coisas com uns telefonemas e uns mails? Podia digitalizar os documentos e enviá-los. Ou, melhor ainda, pedir que lhe fizessem isso. E, depois, tirar o dia de folga.
Às 10,30h, anunciou, solenemente, aos colaboradores: Vou ao tribunal e já não devo regressar hoje. Até amanhã.
Estava Nunes imerso em pensamentos vários, na salinha do café, quando sentiu umas palmadinhas nas costas.
- Então, então, caro Nunes, e que tal, ontem?...
- Ontem?... Ontem o quê, Sr. Miranda?
- Ora, ora, Nunes, não se faça de novas. O que é que apanhou ontem?
- Apanhei!?... Ontem?...
Vermelho como um tomate, Nunes pensava no que havia de dizer. Quase instantaneamente decidiu que o melhor era ser sincero.
- Apanhei uma dezena de sargos, todos de bom tamanho.
- Óptimo, Nunes, óptimo! Aqui para nós, sempre lhe digo que, quando pescava, algumas das melhores pescarias que fiz foram em desenfianços à pala da descentralização administrativa.
- Ah sim!?...
- Claro, homem. Mas já agora, tome nota: da próxima vez, leve um chapéu de abas generosas, se for para o mar, ou fique bem debaixo do chapéu de sol, se for para o rio. Para não dar bandeira com o bronzeado, a meio da semana. Ah, e se entretanto alguém fizer alguma observação quanto ao tisnado da sua pele, não se desmanche. Diga que se achava um tanto pálido e que começou a frequentar um solário.
- Obrigado, Sr. Miranda, o Sr. é o máximo.
- Ora essa, Nunes, entre chefes é assim. Até logo. E viva a descentralização!