De súbito, a pacatez do apartamento do casal Silva Soares, foi agitada pelo berrar estridente do João Luís:
- O Sr. Lopes matou o Carlitos!... O Sr. Lopes matou o Carlitos!... O Sr. Lopes matou o Carlitos!...
Teresinha, refém da fragilidade dos seus cinco anitos, desatou a guinchar desalmadamente, mal ouviu os gritos do irmão, enquanto grossas lágrimas lhe corriam pela cara.
Pedro, do alto dos seus sete anos, conteve as lágrimas, como seria suposto um homem fazer, e perguntou, com insistência: Mas como?... Como foi isso, mano?... Como é que foi?...
João Luís foi buscar um copo, encheu-o de água e bebeu-o de um trago. Depois, com a eloquência dos seus 12 anos, explicou que o Sr. Lopes, o gato de raça indefinida lá de casa, devia ter descoberto a abertura da tampa do aquário e, pacientemente, sacara com as suas unhas afiadas o Carlitos, o pimpão vermelho que o pai pescara há uns meses e trouxera para casa. O pobre peixe fora encontrado no chão da cozinha, esticadinho, após ter servido de farta brincadeira ao pequeno felino.
D. Noémia olhou consternada o aquário vazio e disse para o neto mais velho:
- Nem quero pensar na reacção do vosso pai, logo à noite... Ele nunca gostou do raio do gato. Já do peixinho gostava muito. Até passava tempos e tempos a dar morcões ao infeliz e a vê-lo nadar de um lado para o outro. Ai Jesus, nem quero pensar... E então se ele vier já um bocadinho tocado...
João Luís confirmou, pelas palavras da avó, a gravidade da situação. O mais certo, lá pela meia-noite, quando o pai chegasse do último turno da fábrica, era o Sr. Lopes virar mais um sem-abrigo. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Tinha de fazer alguma coisa.
- Mano, e se fossemos ali à lagoa pescar? Podia ser que apanhássemos outro igual. - Disse o Pedro para o primogénito. - Pois, pois. - Apoiou a Teresinha.
Numa das margens da lagoa formada sobre um enorme buraco, para instalar os caboucos da construção de um centro comercial que morrera antes de ser erguido, os três miúdos estavam desolados.
E agora?... – Perguntou João Luís aos irmãos, olhando o balde com água onde nadavam três pimpões amarelo-esverdeados. – Não apanhámos nenhum encarnado e temos que ir embora, senão a avó fica em cuidado.
- Leva um desses. Em casa a gente pinta-o com aquela tinta que o pai tem para fazer asticot vermelho. – Disse o Pedro, sendo a ideia imediatamente aprovada pelos irmãos.
- Que porcaria – Disse Teresinha ao ver a água do aquário ganhar uma tonalidade vermelha.
- Olha, o peixe virou-se barriga para cima. - Disse o Pedro.
- Morreu. – Disse o João Luís. E antes que a irmã desatasse a guinchar, acrescentou. – Eu trouxe um sobressalente. Que se lixe, fica mesmo com a cor dele. Quando o pai perguntar o que se passou a gente diz que não sabe de nada, que se calhar é assim mesmo, mudam de cor como as folhas das árvores.
Graziela apressou o passo. Já não lhe bastava ter saído às 10 da noite, por causa do serão ao abrigo do malfadado Banco de Horas consignado no Código do Trabalho, essa miserável invenção dos patrões para não pagarem horas extraordinárias, como ainda tivera de passar pelo centro comercial para comprar um peixe vermelho.
No entanto, ainda bem que a mãe lhe tinha telefonado a dar conta da ocorrência. Senão, bem podiam todos aturar o marido mais a sua embirração feroz contra o gatinho.
Ao mesmo tempo, Pedro, após mais de meia hora de voltas na cama, ergueu-se. Sentado, juntou as palmas das mãos e disse baixinho:
- Meu querido Menino Jesus, fazei o milagre do peixinho passar de verde a vermelho, para o meu pai não ficar zangado, que eu prometo que dou o meu carrinho electrónico aos pobrezinhos.
Na manhã seguinte, ainda todos dormiam, Pedro bem se esforçava para reagir como um homem. Mas não conseguia. Fitava o pimpão vermelho no aquário e chorava copiosamente, baixinho, ao mesmo tempo que sorria num esgar esquisito e balbuciava:
- Milagre! Milagre! Milagre!...
O padre Miguel ouviu atentamente a narrativa de Pedro. Pensou uns segundos e, depois, disse: - Espera um bocadinho que eu vou ali ao altar conversar com Nosso Senhor.
Na volta, disse-lhe: - Olha Pedro, o Menino Jesus mandou dizer que não quer que te desfaças do teu carrinho para pagamento da promessa. Prefere antes que te portes bem e que não voltes a chamar “velha” à tua avó. Vai descansado mais o carrinho e dá cumprimentos à D. Noémia.
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