Este texto não é de minha autoria, apenas o considero um pouco meu, sem qualquer tipo de pretensão, por já ter vivido sentido e "cheirado" coisas neles descritas...
"A CAÇA E AS CRÍTICAS
Em tempos, num site onde regularmente publicava fotografias, tornou-se deveras comum receber queixas de outros utilizadores que se diziam anti-caça. Nada que me tirasse o sono, obviamente, mas ainda assim achei que devia responder publicamente a todos, nem que fosse sob o pretexto de me dirigir apenas a um. Afixei isto, mais coisa, menos coisa:
“Recebi um mail de alguém que se referia à caça, aos bichos e a algumas das fotos que tiro. Aliás, confesso que já não é a primeira vez que tal sucede; mesmo que contabilizasse apenas as partes onde me condenam, ainda assim ficaria com um monte de folhas que bateria de longe, em altura, o resultante do empilhamento de todas as escrituras dos apóstolos até ao séc. II d.c.. Honestamente, não me importo que refiram o que pensam sobre esta matéria tão polémica nas mensagens que me enviam, mas gostava de dizer duas ou três coisitas aqui, à luz do dia. Falo para poucos ou para muitos, para todos ou só para ti que não me gramas.
Verdadeiramente, julgo que não é o gosto pelos coelhos que nos separa. Ambos os comemos. Mas enquanto um os compra no talho já esfolados, o outro passa os dias debaixo do sol à procura deles. Por falar em sol, a maior parte das galinhas que tu comes nunca o viram, e as que para ele olharam fizeram-no atrás de grades ou redes. O mesmo se passa com os porcos, com as vacas, com os perus que à tua mesa brilham com molhos e temperos. Todos eles conheceram a liberdade como um gnu africano adulto conheceu o desenvolvimento das máquinas de costura. Mas não os matas, de facto, dou-te isso: outros o fazem por ti. Não deixa de ser irónico, porém, que o não vejas ou não queiras ver, ou disso saber.
Por falar em saber... digo-te que mais de 99% dos animais e aves que vejo durante um dia de caça não são nem serão mortos por mim. Mais de 90% não são, sequer, animais ou aves que a lei permita que se cacem. Conheço-os a todos, ou quase todos, assim como conheço uma infinidade de plantas e insectos, os seus tons e odores, os ciclos da sua vida. Sei como é diferente o cantar de uma perdiz do barulho que uma porta de um armário faz quando abre; como o grasnar do gaio se distingue do ronco de um motor de 6 cilindros. Sei o que os bichos comem e onde vivem, o que fazem e quando o fazem. E sei tudo isto porque tudo isto faz parte do que vejo durante um dia de caça, porque tudo isso faz parte da minha vida e não apenas de um programa do Discovery Channel.
Para além dos animais, aves, plantas e insectos, à caça devo dezenas de paisagens, onde passo dias inteiros rodeado de milhares de cores, muitas delas inexistentes em quaisquer obras ou lugares dos homens. Vejo o sol nascer mais vezes do que tu, a não ser que sejas padeiro; sinto o cheiro da terra húmida do orvalho da manhã; respiro o fresco das ervas, da geada.
Para lá do que vejo, e do que conheço, há o que tenho: sacos de fotografias. Não são apenas de casas, de ruas ou de coisas estanques, que não saem do mesmo sítio; são imagens de momentos passados com o cão, com a namorada, com todo o tipo de criaturas selvagens, em plena natureza. E para além das fotos tenho dezenas, centenas ou milhares de histórias minhas para contar aos meus amigos e familiares, que um dia as contarão aos seus amigos, filhos e netos. E são todas histórias minhas, que presenciei e senti, bocadinhos de mim, de momentos que vivi. Não são histórias de escritores, de livros, impessoais, impressas em milhares de exemplares. São minhas. Diferentes. Únicas. Passas mais tempo a ler as dos outros que a escrever e viver as tuas, não é?
Chego ao fim do dia todo roto, sim, cansado, com o corpo dorido, mas sempre de alma cheia. Fecho os olhos e imagino que estou outra vez nos campos, entre rios e montanhas, ou em qualquer outro lugar, a contar formigas, a descascar laranjas. E é segundos antes de adormecer que penso baixinho que… a caça é apenas uma boa desculpa para ter tudo isto.
Já agora, sobre o respeito pelos animais, duas palavras: o respeito não se apregoa, não se anuncia. Ou temos respeito ou não temos respeito. E o respeito não se confunde com a finalidade ou propósito que os animais tiveram ou têm na nossa sociedade, como base da nossa alimentação. O respeito pelos animais é conhecê-los, saber quem são, onde vivem, o que precisam para sobreviver, para se reproduzirem. É garantir que nascem livres e que morrem livres, é compatibilizar a sua existência com as nossas actividades (agrícolas ou urbanas), é assegurar o equilíbrio entre espécies, dar-lhes recursos, alimentação e abrigo. Muitos caçadores semeiam nos seus campos milho, trigo e centeio para os animais; quando não podem semear criam estruturas para colocar lá comida; em momentos de seca dão-lhes água; plantam vegetação, criam habitats, fazem repovoamentos, vacinam espécies, vigiam as florestas. Este ano, tal como no ano passado, semeei aveia, trigo e milho. E tu? Que fizeste tu? Foste ao talho, não é?
Por falar em talho, tenho mesmo que te dizer esta: o coelho que apanhei ontem não nasceu numa gaiola. Conheceu a mãe, o dia e a noite, e sentiu o cheiro da terra. Com um pouco de sorte encontrou uma coelha toda gira e simpática e já tem uma porrada de filhos a correr pelos campos. O que tu compras no talho ou no hipermercado não chegou a saber que o mundo tem mais de um metro quadrado, que a comida que lhe estava destinada era erva fresca e não ração, e que o sexo é uma coisa bem diferente daquilo que sentiu quando entalou a pila nas latas das vitaminas.
Não sei se já reparaste, mas parecemos duas formigas a tentar decidir se devemos deixar as estrelas onde estão ou mudá-las para o fundo de um poço. Eu não quero o teu peixe, como tu não queres o meu. Não é grave. Nada mesmo. Até me escreveres, eu não sabia que existias."
Partilhado por Simão Leite